“O Metrô de SP perdeu o caráter de projeto desenvolvimentista”
No fim de novembro, o governo de São Paulo sofreu derrota após a tentativa de conceder à iniciativa privada as linhas 5-Lilás e 17-Ouro do metrô paulistano. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) suspendeu o leilão após o envio de uma representação que relatava irregularidades no edital.
O caso levantou um debate sobre a situação do metrô paulistano. O atraso nas obras, os escândalos de corrupção, as tentativas de privatização e o sucateamento de algumas estações do metrô de São Paulo têm gerado decepção para os usuários.
Esse transporte, um dos mais rápidos para os trabalhadores, vive impasse no tocante às relação entre o poder público e a iniciativa privada. Atualmente, o Metrô de São Paulo tem uma linha (a 4-Amarela) concedida a empresas e outra, a linha 6-Laranja, com obras paradas há mais de um ano e sem previsão de entrega sob o controle do consórcio Move São Paulo.
Na dissertação de mestrado “Relações público-privadas no Metrô de São Paulo”, defendida na Universidade de São Paulo (2017), Daniela Costanzo de Assis Pereira, pesquisadora do Núcleo de Desenvolvimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), analisou o financiamento do metrô de São Paulo e sua influência no desenvolvimento do transporte público. Nesta entrevista a CartaCapital, Pereira afirma que modelo de Parceria Público-Privada, o preferido do PSDB, que governa São Paulo há 20 anos, deve ser tratado com muito cuidado, pois a chance de o estado, e o contribuinte, terem prejuízo, é muito grande.
CartaCapital: A partir da perspectiva histórica abordada em seu estudo, quais foram as principais mudanças observadas desde a formação do Metrô nos anos 1960 até os dias atuais?
Daniela Costanzo de Assis Pereira: Nos anos 1960, o financiamento estava dentro de um plano de desenvolvimento para o País e ao mesmo tempo o Metrô era centralizado no governo federal, principalmente na tomada de decisão da linha 3 – Vermelha. A empresa (Metrô) também era muito capacitada. O governo federal decidia para onde iria a linha, mas todas as outras decisões de desapropriação eram acordadas dentro do Metrô. Além disso, não havia nenhum movimento ligado ao Metrô, era um contexto de ditadura militar. A transformação ocorreu com a queda do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento). Com a crise econômica pós-milagre, no fim dos anos 1970 as fontes do Metrô secaram, fazendo com que a companhia ficasse dependente do orçamento estadual.
CC: Quando se deu o início da participação privada no Metrô de São Paulo?
DCAP: A partir do começo dos anos 1990 começou a surgir dentro do Metrô a ideia de se conseguir um financiamento de um parceiro privado, tanto para construir as linhas, quanto para operar, e isso se consolidou com o início da negociação com o Banco Mundial.
Nesse momento o Metrô já tinha perdido boa parte de seus funcionários do corpo técnico, que era muito capacitado, com o Programa de Demissão Voluntária (PDV) durante o governo Covas. Com algumas mudanças na administração da Companhia do Metrô, que tiraram o poder do gerente e dos técnicos e deram mais poder aos diretores, muita gente saiu e foi abrir suas consultorias privadas que até hoje prestam serviço para o Metrô. Nota-se que o Metrô de São Paulo, ao longo do tempo, perdeu o caráter de projeto desenvolvimentista.
CC: Como as diferentes gestões influenciaram na ampliação do Metrô?
DCAP: Nas entrevistas que eu fiz, mostra-se a ideia de que o PSDB e sobretudo, o Mario Covas trouxe essa ideia da iniciativa privada e de uma administração mais fechada na diretoria, mas algumas características continuaram, o serviço prestado pelo Metrô ainda é muito bom, isso não mudou, apesar de ele ser muito pequeno e insuficiente.
CC: O Metrô vive uma relação de dependência com as fontes privadas?
DCAP: Acabou ficando dependente politicamente, eu acho que nesse momento antes da crise mais recente, o Metrô não dependeria de fontes privadas, o que temos agora é a linha amarela tendo um problema claro de desenho da PPP (Parceria Público-Privada)o que colaborou para essa situação de atrasos.
CC: O que a situação da linha 4 – Amarela revela sobre as PPPs?
DCAP: As PPPs permitem que se negocie quase tudo do contrato e permitem também que se remunere a linha. Na hora de construir a PPP, é preciso muito cuidado, porque as chances de o governo perder são muito grandes. O governo não atrelou a obra à operação, mas fez as duas coisas separadamente. E a obra picotou em quatro lotes – os três primeiros eram necessários para iniciar a operação e a Via Quatro começar a receber pelo empreendimento, o lote 4 era das estações que dão menos lucro e ainda estão em construção.
Os lotes de interesse da Via Quatro foram construídos pelas mesmas empresas que constituem a Via Quatro. O resultado foi que os consórcios Via Amarela e Camargo Corrêa/Siemens/Andrade Gutierrez entregaram no prazo as obras dos lotes 1, 2, 3, enquanto o consórcio Isolux Consar Corviam não entregou e o Metrô teve de pagar as multas.
CC: Alguns afirmam que o estado não tem capacidade de gerir o Metrô e, por isso, surge a necessidade de privatizá-lo. A senhora concorda com isso?
DCAP: Discordo totalmente, o Metrô sempre foi uma empresa exemplar, era uma empresa altamente tecnológica. Hoje, o problema é que não cresce por casa dos investimentos. Não dá para negar que o Metrô tem capacidade. O que o Metrô faz hoje é passar essa capacidade para as empresas que vão operar, tanto no caso da linha 4 quanto no caso das linhas 5 e 17. Ou seja, é uma burrice completa.
É bom ter em mente que é um modelo que não vai se reproduzir por muito tempo, porque ele é esgotável: o Metrô recebe menos e paga mais para a iniciativa privada, então cada passageiro é um prejuízo para o Metrô, enquanto podia ser um lucro e esse dinheiro só aumenta. Nós pagamos para a linha 4, e além de pagar todas as tarifas cheias, ainda pagamos essa multa (pelas obras não construídas).
A tarifa que a linha 4 recebe é maior do que a recebida pelo Metrô, atualmente em 4 reais, e a mesma coisa vale para essa possível concorrência internacional das linhas 5 e 17. No edital é proposto que o Metrô pague 1,73 real por usuário, e se ele não entregar as estações, pagará 2,75 reais, ou seja, e isso levando em conta ainda que 33% do financiamento da linha 17 ainda não foi realizado pelo Metrô.
CC: Como a senhora analisa a situação do Metrô de São Paulo atualmente?
DCAP: O que eu vejo atualmente é a tendência de passar a operação para a iniciativa privada, mas apenas os trechos que são interessantes, como a Linha 4. O Metrô ainda é uma empresa forte, os funcionários resistem com as tentativas de privatização do governo, o cenário é de um sindicato muito forte.
E o caso dos cartéis do Metrô eu vejo mais como um problema de obras e de infraestrutura do Brasil em geral. O que acontece é que é um mercado muito pequeno, são poucas empresas com capital fechado e administração familiar normalmente, o que torna uma negociação muito restrita, e isso faz com que elas se unam e ofereçam o preço e negociem com o Metrô.
Fonte: Carta Capital
Foto: Diogo Moreira