Bondes modernos
Confira aqui a opinião de mais um especialista afirmando que o monotrilho não é a solução para o problema da falta de transporte público na cidade de São Paulo.
Sob o título acima, o Estadão publicou editorial (8/2, A3) dando conta da grande preferência que as prefeituras brasileiras estão dando aos "bondes modernos" como a melhor solução para o transporte público. Isso porque o metrô tem altos custos de instalação e o Bus Rapid Transit (BRT) – sistema de ônibus baseado em corredores exclusivos, livres de cruzamentos e outras interferências – oferece dificuldades para adoção.
Ironia do destino: quando impensadamente a cidade de São Paulo extinguiu o seu sistema de bondes, condenado por obsolescência, não imaginava vir a admiti-lo como tábua de salvação, após modernizado. Errou-se antes e se corre o risco de errar de novo.
O bonde moderno, implantado sem a reserva de faixas exclusivas, terá capacidade para transportar de 15 mil a 20 mil passageiros por hora e por sentido. O BRT, operando em corredores segregados, transportará o dobro disso e o metrô tem capacidade para o triplo. Portanto, o metrô não tem altos custos de implantação à toa: é a única maneira de atender a elevadas demandas. Também o BRT não oferece dificuldades para sua adoção: ao contrário, é o sistema mais fácil de adotar para a capacidade de oferta que tem.
Por não saber o que fazer com o transporte, a cidade extinguiu o único modo de média capacidade que tinha, em vez de modernizá-lo, em nome da chegada do metrô, anunciada no mesmo ano de 1968 com a criação da Companhia do Metropolitano de São Paulo. Só que a sua primeira linha, com extensão próxima de 10 km, foi inaugurada apenas sete anos depois. Enquanto isso, nenhuma outra modalidade de mais alta capacidade de transporte público do que os ônibus, salvo algumas decadentes linhas de trens metropolitanos. E, 42 anos depois, a promissora rede de metrô não chega a 70 km de extensão.
Durante o governo Montoro o sistema estadual de trens metropolitanos foi completamente modernizado; na gestão Covas, o sistema federal foi conjugado ao estadual, dando origem à Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), somando tudo 260 km de extensão, e tendo início um amplo e longo processo de atualização tecnológica.
As linhas de bondes, quando extintas, somavam 260 km, permitindo a configuração de 700 km de itinerários. No seu melhor momento, esse sistema permitiu ofertar aos cidadãos de São Paulo 0,58 viagens por habitante/dia. Entretanto, o sistema sobre trilhos de hoje (260 km de trens metropolitanos e 70 km de metrô) oferece aos moradores da metrópole não mais que 0,22 viagens por habitante/dia!
Em 1948, 56,5% dos deslocamentos na cidade de São Paulo eram feitos por modo eletrificado. Hoje esse número não ultrapassa 11,9%, do que resulta a poluição que está aí.
Dos deslocamentos por meios motorizados, 88,1% se fazem, na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), em veículos movidos a combustível, com baixo rendimento energético. E 33% do total dos deslocamentos se fazem a pé!
Uma viagem de automóvel na RMSP consome 26 vezes mais energia do que a viagem média por metrô. E causa congestionamentos, polui o ambiente, promove acidentes. A cada ano, 3.500 pessoas morrem, na RMSP, em razão da poluição do transporte.
Hoje, muitos daqueles que aplaudiram a retirada dos bondes (aqui e em outras 70 cidades brasileiras) aplaudem a volta dos bondes… Com os bondes se foram, também, vários corredores com faixa exclusiva.
É uma triste e longa história da decadência dos transportes.
Olavo Setubal, quando prefeito, previu a necessidade de implantação de corredores operados por tróleibus, precursores do BRT. Lançou um programa para 280 km de rede, servindo a 400 km de itinerários em 33 linhas, utilizando 1.280 tróleibus articulados (para 155 passageiros). Em suas memórias, diz ele que "o tróleibus não consumia petróleo, não poluía, era adequado às características de São Paulo e podia ser produzido localmente, pois São Paulo reunia potencial tecnológico e industrial para isso. Além disso, abria campo para o desenvolvimento de tecnologia que poderia gerar divisas importantes para o País".
Ao mesmo tempo, Setubal implantou 60 km de faixas exclusivas para ônibus. Quando terminou o seu mandato, a Prefeitura estava recebendo os primeiros tróleibus, de uma encomenda de 300, com tecnologia de última geração. Pena que os prefeitos seguintes não tenham dado a mesma importância à lúcida visão de futuro de Olavo Setubal.
A consequência dessa falta de visão que predominou nas administrações municipais, salvo em poucos períodos, é o prejuízo que a população metropolitana tem hoje, da ordem de R$ 40 bilhões por ano, por causa dos problemas de transporte e de congestionamento. Ao longo dos últimos 60 anos pode-se dizer que a população perdeu algo como US$ 1 trilhão!
Não foi, portanto, a falta de conhecimento, de tecnologia e até de recursos que levou a RMSP a esta calamidade na área dos transportes. Faltou vontade de fazer; faltou visão a muitos; sobrou o lobby da indústria de automóveis e do petróleo, favorecendo os administradores "obreiros" que se elegem à custa de uma imagem de realizadores de obras públicas.
Imaginar que o problema do transporte urbano se vai resolver com novos bondes, especialmente se tiverem de conviver com ônibus, automóveis, motocicletas, bicicletas e pedestres, é um grande engano. Uma das virtudes dos projetos de BRT já implantados é demonstrar que a qualidade principal do sistema está no uso de faixas exclusivas. E se os veículos forem movidos a eletricidade e/ou a hidrogênio, se forem pelo menos híbridos, melhor ainda. Os trilhos, agora, são dispensáveis, salvo nos trens metropolitanos e no metrô.
Adriano Murgel Branco, engenheiro especialista em trânsito, foi secretário de Transportes do Estado de São Paulo
* Artigo publicado na coluna "Espaço Aberto" do jornal O Estado de S. Paulo, dia 22/02/2010.