Muito mais que vinte centavos.

A insistente prática do coronelismo econômico-jurídico nas grandes cidades, soberbo e imprudente, levou “coronéis e empresários” a apostar na aparente fragilizada democracia brasileira. Foram incapazes de compreender que os míseros 20 centavos são bilhões de reais a mais nas tarifas de um sistema precário de transporte, sem contar a abusada e excessiva carga tributária que aliada à péssima distribuição de renda vem penalizando a sociedade brasileira com baixíssimos índices de desenvolvimento.


O governo não esqueceu, mas ignorou o fato de que preço e valor não possuem o mesmo significado. Desatento aos acontecimentos políticos mundo afora, e menosprezando internamente os movimentos sociais, acreditou que por se tratar do mesmo palco social poderia facilmente, a qualquer momento, se utilizar de instrumentos retrógrados para dispersar um “pequeno grupo de insatisfeitos”.

Todavia, não é como no tempo de Canudos, quando toda covardia era permitida. Então, o Fracasso foi total: nem a repressão policial aliada às opiniões de ancoras dos meios de comunicação coestatal foi capaz de sufocar o desejo de mudança, como tinha de ser! Para nós mortais, assalariados e pagadores de tributos, fica uma lição: “mostre-me como coordena sua polícia e jornalistas, e te direi quem tu és” e para eles…, fica o ensinamento de Habermas: “há muito tempo deixamos de viver as liberdades predatórias para viver as liberdades disciplinadas e garantidas pelo direito!”.

Não podemos mais aceitar que façam da coisa pública extensão de seus negócios privados, uma apropriação aberrante dos ensinamentos do economista John Maynard Keynes, que acreditava na intervenção do Estado na economia para garantir a livre concorrência, o desenvolvimento socioeconômico, a segurança jurídica e o pleno emprego. Mas infelizmente observamos exatamente o oposto; e assim como no caso da teoria da relatividade a qual utilizaram parar criar a bomba atômica, se apropriam de uma grande teoria econômica, novamente para fazer o mal, utilizando-a como ferramenta para realizar objetivos individualistas da minoria em detrimento da coletividade.

O que estamos vivendo hoje parece mais uma relação incestuosa, onde governos alimentam empresas (políticos) e empresas alimentam governo (partidos); o político e o empresário, a coisa pública e o negócio privado sugerem mais uma mera divisão didática, pois de fato se intercalam em um esquema de mútua dependência e retroalimentação que torna difícil definir quem é o que? O superfaturamento, os desrespeitos às regras de licitar e aos contratos são tão recorrentes e descarados que até parecem mandamentos constitucionais.

A supremacia do interesse público, princípio norteador da administração pública, cedeu lugar à lógica exclusiva do super lucro ou lucro artificial. Por isso, mais do nunca, é preciso de governança, pois ordem e o progresso não se conquistam nem se mantêm com projéteis de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes e prisões arbitrárias, mas, sobretudo, com o exercício de princípios constitucionais como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência! A repressão e a propaganda não podem mais convalidar a gestão desastrosa e imoral, não podem mais serem utilizadas para tapar as “brechas” da lei. É como disse um entre os grandes sábios do espírito alemão, Goethe: “Aprender a dominar é fácil, mas governar é difícil”. Se não estão dispostos a trabalhar para a construção de um país forte e o progresso da nação, que peçam para sair! 

Contudo, não nos assustemos com essas supostas novidades, sempre foi assim mesmo, algumas unidades monetárias de acréscimo ao salário mínimo, por exemplo, representam uma conta muito onerosa para o Estado, superando a expectativa orçamentária, contribuindo para atingir o que alguns juristas defendem como um limite de gastos para o governo, a “reserva do possível”. Por outro lado, quando se trata de tributar o contribuinte, raramente se observa uma reserva de ponderação e o poder se dissocia do bom senso, perdendo a razoabilidade, momento em que as justificações se tornam as mais egoístas e engraçadas: “vinte centavos não são nenhuma moedinha! Além do mais, é socialmente justo, pois está abaixo da inflação acumulada!”. 

Passado algum tempo nessa contabilidade hostil e dissimulada, o acúmulo do descaso obriga o povo sair às ruas para cumprir com sua função precípua: impor limites a um governo que atenta contra a liberdade e a propriedade dos seus administrados. Quando isso ocorre, governos que não sabem ouvir seus eleitores, e nesses momentos se esquecem dessa inerente qualidade de cada cidadão, usam arbitrariamente da força para reprimir quem se declara indignado contra atos abusivos e contrários ao ambiente político democrático e republicano. Essa postura reafirma que somente o respeito à dignidade humana e a construção de um rol de direitos podem ser bases sólidas, e por isso indispensável para construção de qualquer sociedade que se julgue ou pretende ser pós-moderna.

Nesse contexto, a tomada das ruas, sobretudo por jovens, é um grande exemplo do exercício de cidadania e da proteção de direitos fundamentais que não podem retroagir, o que justifica a fiscalização da conduta de qualquer governo, que tem a obrigação de promover o desenvolvimento sustentável para uma vida com dignidade para todos. E como no Brasil as políticas são quase sempre sectárias, o desenrolar das manifestações não poderiam ter tido melhor caráter pedagógico para alguns políticos que se acham modernizados pelo uso das propagandas, redes sociais e pelo trabalho de marketing pessoal. Ficou evidente que o povo não aceita mais nem 20 centavos de abuso no bolso de cada cidadão. Não importando se é nos transportes, na saúde, na educação ou na segurança pública. Para isso não podemos nos esquecer da importância de acontecimentos como a Comuna de Paris, a Revolução Russa e a Inconfidência Mineira! 

Essas, entre outras manifestações populares, não adentrando em sua classificação histórica e especificações de cunho político e econômico, são necessárias e parte determinante da dialética para se construir uma sociedade mais justa e plural, onde possamos viver as liberdades que esperamos de uma sociedade pós-moderna. Ensina-nos Goethe: “Quem, de três milênios, não é capaz de se dar conta, vive na ignorância, na sombra, à mercê dos dias, do tempo”. Ignorar a história é viver como um ignorante, a mercê das vontades alheias.

 As mudanças na estrutura socioeconômica nunca ocorreram simplesmente por meio de eleições, passa antes pela formação cultural e pela ação das massas nas ruas, ocupando o que lhe é de direito, o espaço público. É preciso ficar claro que as decisões mais importantes para o país não são tomadas no congresso, assembleia legislativa ou câmara de vereadores, mas em lugares onde o povo não possui representante, e não há de se iludir que o tenha! Então, o brasileiro, que seguramente acreditavam ser o indivíduo que só pensa em futebol, cansou dos estádios com custos públicos milionários, da esmola do ingresso com desconto, da bolsa família… acordou do sonho e decidiu não mais esperar somente do sufrágio universal que há muito tempo não vem funcionando em nosso sistema eleitoral corrupto. Porque nele o voto é como uma arma sem munição, você aponta para os políticos incompetentes, os quais pretende banir da administração da coisa pública, aperta o gatilho e não acontece nada; é como se fosse o Freddy Krueger da hora do pesadelo, ou Jason da sexta-feira treze, sempre voltam para infernizar sua vida!


Eric Augusto Alves